sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

BOMBA: Justiça interdita Presidio Regional de Montes Claros

Ação Civil Pública
Processo n.: 0433.13.005280-7
Requerente: Ministério Público do Estado de Minas Gerais
Requerido: Estado de Minas Gerais



Vistos, etc.

Ministério Público do Estado de Minas Gerais ajuizou a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA, com pedido de liminar, em face do Estado de Minas Gerais, alegando, em síntese, o seguinte:
Que o Presídio Regional de Montes Claros tem capacidade de acolhimento de 592 (quinhentos e noventa e dois) presos, mas que abriga quase o dobro desse número. Assevera que referida superlotação ofende a dignidade dos reclusos, além de comprometer a segurança do presídio.
Prossegue dizendo que, em razão da enorme quantidade de presos, há constante falta de água nas dependências do presídio – ocasionando o seu racionamento, de modo que alguns dos presos sequer têm acesso a uma higiene adequada.
Requer, em liminar, “a transferência ou recondução imediata dos presos oriundos das várias comarcas desta região Norte Mineira”, bem como “a proibição de se recolher na referida Unidade Prisional novos presos, enquanto perdurar o excesso de contingente”. Como pedido final, requereu a confirmação da liminar e, “alternativamente, na impossibilidade física e material de transferência definitiva do excesso populacional carcerário, seja mantido o recambiamento dos presos de outra comarca, deferido liminarmente, até que o Presídio Regional de Montes Claros, cuja capacidade máxima é de 592 (quinhentos e noventa e dois) detentos, e que de imediato se estabeleça a proibição de recolher na referida Unidade Prisional detentos sempre que tal fato implicar no excesso de contingente”.
Juntou os documentos de fls. 22/96.
A liminar foi indeferida às fls. 97/97 v.. O autor, irresignado, interpôs agravo de instrumento (fls. 100/119), que foi parcialmente provido.
O Ministério Público manifestou-se às fls. 125 e juntou os documentos de fls. 126/130.
O Estado de Minas Gerais apresentou contestação, às fls. 132/151, alegando, em síntese, que a prestação jurisdicional deve incidir sobre fatos concretos levados ao processo e não sobre suposições como a declaração do Conselheiro da Pastoral Carcerária. Afirma que é preciso se levar em consideração a cláusula de reserva do possível, sendo que o Estado de Minas Gerais não possui recursos suficientes para construir novos presídios, não obstante invista, com o máximo de esforço, na segurança pública e melhoramento das unidades prisionais e de efetivo. Nega que os reclusos do Presídio Regional de Montes Claros sejam submetidos a condições degradantes ou desumanas e afirma que, caso julgado procedente o pedido, o resultado obtido seria pior do que aquele almejado, uma vez que equivaleria, segundo afirma, “a piorar a situação dos demais estabelecimentos do Estado, agravando sua superlotação e, eventualmente, liberar presos provisórios e definitivos sem o cumprimento das penas em detrimento dos interesses da sociedade”.
Afirma também que a pretensão ministerial seria impossível, sob pena de ingerência indevida no Poder Executivo, em manifesta afronta ao princípio da Separação dos Poderes. Ao final, aduz que a realização de obras públicas demanda previsão orçamentária anual e plurianual fixada em lei específica, salientando que a transferência dos presos, a reforma das instalações ou a construção de novo presídio iria gerar um impacto deficitário de grandes proporções no orçamento estatal.
Requer, finalmente, a improcedência dos pedidos iniciais.
Juntou os documentos de fls. 152/164.
O Ministério Público apresentou impugnação à contestação às fls. 172/175.
Intimadas as partes para especificarem as provas que pretendem produzir, ambas pugnaram pelo julgamento antecipado da lide.
É o relatório do necessário. DECIDO.
É caso de julgamento antecipado da lide, porque, quando intimadas, ambas as partes abriram mão, expressamente, da produção de outras provas e pugnaram pelo julgamento do feito no estado em que se encontra (fls. 176 e 177).
A preliminar de impossibilidade jurídica do pedido, levantada pelo Estado de Minas Gerais, não merece prosperar. Embora seja cediço que a Separação dos Poderes é princípio fundamental do Estado Brasileiro, expressamente adotado pela Constituição Federal, no seu artigo 2º, não é legítimo que o Estado dele se valha como escudo, para evitar qualquer tipo de fiscalização ou controle de sua atividade.
No caso dos autos, a pretensão ministerial, embora não mereça ser integralmente acolhida – como se verá adiante – é louvável e cumpre sua função constitucional de defesa dos “interesses sociais e individuais indisponíveis” (artigo 127, CF/88). Na hipótese sub judice, que versa acerca da violação à dignidade da pessoa humana dos presos do Presídio Regional de Montes Claros – como afirmado pelo Ministério Público –, é seu dever atuar em defesa daqueles que seriam vítimas dessa violação, inclusive com o ajuizamento de ações que visem a melhorar sua condição. A todos deve ser garantido o chamado “mínimo existencial”, sendo que, nesses casos, não é possível a utilização do argumento da “cláusula de reserva do possível”, uma vez que, sem sombra de dúvidas, a dignidade de todos deve ser, incondicionalmente, preservada e garantida.
Pelos argumentos acima, rejeito a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido inicial.
Por não haver outra preliminar a ser apreciada, passo ao julgamento do mérito.
No caso específico dos autos, entendo que a pretensão inicial deve ser acolhida somente em parte, sob pena de se instaurar uma situação pior do que a encontrada nos dias de hoje, pelos motivos abaixo alinhados.
Impende destacar que o réu não nega a ocorrência de superlotação. Entretanto, limita-se a apontar outras unidades prisionais, no Estado de Minas Gerais, que se encontram em situação semelhante e levanta a tese da “cláusula de reserva do possível”, para justificar a situação em que se encontra o Presídio Regional de Montes Claros. Trata-se, então, de ponto incontroverso, sobre o qual não deve recair a prova (artigo 334, III, CPC).
Embora o Estado de Minas Gerais quisesse argumentar, em sua contestação, que inúmeros outros presídios, no Estado, se encontram em situação semelhante à do Presídio Regional de Montes Claros, veja-se que ele informou, no documento de fls. 126/130, que o Presídio Alvorada – também nesta cidade – abriga menos presos do que a sua capacidade (fls. 130). Embora sua lotação seja quase integral, a condição dessa outra unidade prisional não se compara à do Presídio Regional.
A questão do racionamento de água, de outro lado, é gravíssima. Embora não se tenha demonstrado nos autos ou não se saiba qual a origem do problema, não se pode deixar de considerar que a superlotação – que pode não ser a causa – agrava substancialmente a distribuição de água. É inconteste que o direito ao acesso de todos à água se transveste em direito social, num desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana.
O eminente Desembargador Judimar Biber, no julgamento do agravo interposto contra a decisão liminar proferida nestes autos, deixou consignado que é “patente a ineficiência da Administração Pública no enfrentamento do problema”, sendo “péssimas condições carcerárias declinadas na inicial da ação civil pública que foi trazida neste agravo, lá constando não apenas a superlotação carcerária, mas a ausência de condições mínimas disponibilizadas pelo Estado”.
A matéria, embora complexa, já foi objeto de inúmeras decisões, devendo ser ponderados os valores em conflito, a fim de que se chegue à melhor solução possível. Não se pode olvidar que o déficit orçamentário, a ineficiência da Administração Pública, bem como a impossibilidade de resolver o problema a curto prazo, são fatores que devem ser levados em consideração, mas também não se pode deixar de apreciar a questão da dignidade da pessoa humana, princípio presente em todas as constituições ocidentais e que tem como marco a Revolução Francesa. Assim, diante do conflito de valores, há de ser observada, no caso concreto, a preservação da dignidade dos presos que, nas condições relatadas e comprovadas pela documentação de fls. 24/29, 38, 40/42, está sendo permanentemente violada.
Com efeito, a vedação para que sejam enviados, para aquela unidade, novos presos encontra fundamento e não se afigura descabida ou desarrazoada, sendo que o próprio Tribunal de Justiça, em situações semelhantes, adotou tal posicionamento:

MANDADO DE SEGURANÇA - DECISÃO LIMITANDO A CAPACIDADE DO PRESÍDIO LOCAL - ATO EXARADO PELO JUIZ DA EXECUÇÃO PENAL - ART. 66, VII E VIII E ART. 85 DA LEI DE EXECUÇÕES PENAIS - SUPERLOTAÇÃO DO PRESÍDIO - CONDIÇÕES PRECÁRIAS - OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA SEPARAÇÃO DOS PODERES - INOCORRÊNCIA - DENEGADA A SEGURANÇA.
- Constatado que houve intimação da Administração Pública, possibilitando sua manifestação, e esta permaneceu silente, não há que se falar em ofensa ao principio do contraditório, vez que não pode aquela se beneficiar de sua própria desídia.
Acertada é a decisão do magistrado de limitar o número de presos no estabelecimento prisional, quando comprovado que o presídio não reúne as condições mínimas necessárias ao seu regular funcionamento, em razão da superlotação, representando um desrespeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, bem como um perigo para os agentes penitenciários, diante do risco de motins e rebeliões
- A execução das penas ocorre de forma conjunta entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, e quando aquele não zela pelo cumprimento dos preceitos fundamentais, não garantindo o mínimo existencial às pessoas, viável é a ação do Poder Judiciário para preservar a dignidadeda pessoa humana. Não afronta o princípio da separação dos poderes a interdição de estabelecimento penal que estiver funcionando em condições inadequadas, vez que se trata de uma função atípica conferida ao Poder Judiciário pelo art. 66 da LEP, diante da inércia dos órgãos estatais competentes em promover a eficácia e integridade dos direitos individuais garantidos na constituição. (TJMG – Rel. Des. Silas Vieira – DJ 18/11/2014 – grifo posto).

O que não se pode admitir é que o Estado se valha ad eternum dos mesmos argumentos de falta de estrutura e orçamento para manter os presos em condições desumanas e degradantes, em manifesta ofensa a sua dignidade.
De outro lado, o pedido de transferência do excedente dos presos para outras unidades prisionais, bem como o seu recambiamento de outras comarcas para aquelas de origem, não pode ser acolhido, uma vez que não há, no caso dos autos, elementos suficientes para que se conclua que outras unidades prisionais – para as quais pretende o autor que sejam transferidos os detentos – têm condições – de pessoal ou estrutura – de acolher esse contingente de mais de 500 (quinhentos) presos. Além do mais, o pedido nem sequer menciona para quais estabelecimentos deveriam os presos ser transferidos. Essa circunstância, aliás, foi reconhecida pelo próprio Desembargador Elias Camilo Sobrinho, em seu voto, quando do julgamento do agravo n. 1.0433.14.005280-7/001.
Finalmente, o acolhimento de referidas pretensões, sem cabal demonstração de que cessaria a ofensa à dignidade dos detentos, poderia representar até mesmo um agravamento da situação atual, com distribuição do contingente para presídios em situação semelhante ou pior que a constatada no Presídio Regional de Montes Claros, além de significar possivelmente um afastamento dos presos de seus familiares, o que fere o princípio da humanização da pena.
Em face do exposto, na esteira do que já ficou decidido no agravo de instrumento referente a este processo, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTE O PEDIDO e determino ao réu que não recolha, ao Presídio Regional de Montes Claros, mais presos, tanto provisórios quanto definitivamente condenados, enquanto perdurar o excesso de contingente, não devendo, em qualquer hipótese, ultrapassar o limite da capacidade do estabelecimento prisional. Desacolho os pedidos contidos no item 6, alínea “d”, subitens “i”, primeira parte e “ii”.
Sem condenação em custas ou honorários sucumbenciais.
Transitada em julgado, arquivem-se os autos, cumpridas as formalidades de praxe.
P.R.I.
Montes Claros, 15 de dezembro de 2014.



Rozana Silqueira Paixão
Juíza de Direito





FONTE: Site do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

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